Vovó Isabel: uma comunidade negra rural em Nova Palma

Vovó Isabel: uma comunidade negra rural em Nova Palma

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Negritude em pauta

Mais uma comunidade quilombola vai ter sua história contada pela Cresol, através do projeto Negritude em Pauta. Dessa vez você irá conhecer os moradores da localidade de Rincão Santo Inácio, ou comunidade quilombola Vovó Isabel, de Nova Palma, no Rio Grande do Sul. A comunidade é associada da Cresol e seu presidente, Flávio Moreira, é delegado da cooperativa.

Vovó Isabel: uma comunidade negra rural em Nova Palma

Aproximadamente 50 famílias vivem no quilombo localizado no município gaúcho e após a organização puderam melhorar a qualidade de vida.

Comunidade Vovó Isabel segue na luta pelo território.

A localidade de Rincão Santo Inácio ou comunidade quilombola Vovó Isabel, no interior de Nova Palma-RS, é formada por aproximadamente 50 famílias que sobrevivem de agricultura, artesanato, trabalhos fora da comunidade e renda gerada através da agroindústria Vovó Isabel.

Segundo o presidente da Associação Remanescente de Quilombo Vovó Isabel, Flávio Moreira, a agroindústria inaugurada em 2015 foi criada principalmente para proporcionar alternativa de renda para as mulheres quilombolas. No local são produzidos pães, cucas, bolachas, massas, pizzas, entre outros produtos que são comercializados nas comunidades vizinhas, na cidade e através do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

Agroindústria Vovó Isabel proporcionou geração de renda para moradores da comunidade.

Antes da constituição da agroindústria, Jocéli Pereira, já confeccionava pães em casa e vendia para a comunidade. “Mas em casa não tínhamos muito espaço e aqui temos as máquinas e tudo. A renda também melhorou para as famílias”, conta Jocéli. Ela também destaca que o dom e algumas receitas foram herdados da bisavó e da tataravó que já produziam com intuito de “vender para os italianos”.

Jocéli, que também já foi presidente da Associação, ressalta que a agroindústria foi o que mais marcou nesta trajetória, juntamente com as moradias conquistadas através do Programa Minha Casa Minha Vida. “Foi algo maravilhoso que conquistamos. O pessoal morava em casa de chão batido, casa de capim, pau a pique, era horrível até para criar um filho dentro de casa, não é uma coisa que uma família merecia. Com o projeto do Minha Casa Minha Vida melhorou muito a vida das famílias. O lar é outra coisa”, salienta a ex-presidente.

O atual presidente Flávio Moreira também destaca o projeto que permitiu a construção de 24 unidades habitacionais para a comunidade, a agroindústria, entre outras conquistas para a comunidade após a criação da associação. Mas e como se deu a criação da organização?

Casa de capim que existia no Rincão Santo Inácio. Essa pertencia a Vovó Isabel.
Foto: Reprodução/ Arquivo da associação.

Associação Vovó Isabel

A comunidade quilombola de Nova Palma contou com um estudo antropológico em 2003. Já em 2005 um grupo se organizou para a formação da Associação Remanescente de Quilombo Vovó Isabel, sendo registrada em 2006. Conforme o ex-presidente José Peri, a regularização foi muito importante e marcou a vida das pessoas da localidade. Em 2008, a Fundação Cultural Palmares reconheceu a área como remanescente de quilombo. Mas o que isso significa?

As comunidades reconhecidas como remanescente de quilombo são os grupos étnicos-raciais que descendem de pessoas que foram escravizadas, que possuem uma trajetória própria e que historicamente foram oprimidas. Esse foi o caso dos atuais moradores do Rincão Santo Inácio.

Conforme os arquivos do Padre Luiz Sponchiado, por volta de 1840 já se encontram registros sobre a vida de escravizados perseguidos naquele lugar, que na época chamava-se “Rincão da Cadeia”. Conforme destaca Flávio Moreira, era um lugar no meio do mato, de difícil acesso, onde os escravizados fugidos conseguiam água, caça e pesca para sobreviverem. “Muitos escravos aproveitaram a ocupação dos patrões na Revolução Farrapa para fugir dos seus cativeiros”, comenta Moreira. “Antes da Lei Áurea ser assinada, os escravos eram considerados propriedades dos fazendeiros ou estancieiros e tratados como animais, só serviam para servir aos patrões. Com as perseguições uns eram mortos e outros sobreviveram a alto custo”, complementa.

Presidente da Associação Quilombola Vovó Isabel Flávio Moreira (E) com os ex-presidentes Jocéli Pereira (C) e José Peri (D).

Formação do quilombo

Após a assinatura da Lei Áurea em 1888, os ex-escravizados passaram a juntar-se no chamado Rincão da Cadeia e formar famílias, mas continuavam trabalhando de empregados para conseguirem comida e roupas usadas. “Por muitos e muitos anos assim continuaram trabalhando bastante no trabalho pesado, como abrir estradas com picão e foices, nas plantações, que dependia de trabalho braçal. As terras que tinham herdado dos fazendeiros em troca de muito esforço acabavam vendendo a ‘troco de banana’, vendiam barato em troca de algo que necessitavam para o sustento da família”, relata Moreira. 

Antes disso ainda, foram várias “idas e vindas” à localidade, conforme explica Flávio Moreira. Os fazendeiros mandavam capturar os escravizados que fugiam, sendo que alguns escapavam para outros lugares, mas muitos foram mortos. Por volta de 1900, com a escravidão já abolida, foi possível se estabelecer na comunidade. Mesmo perdendo espaço, vivendo em um território que foi se reduzindo, os ataques à comunidade ainda foram realizados anos mais tarde. “O último ataque que tivemos contra a comunidade de pessoas de outra cor, com outros poderes, foi em 1953. Foi quando eles laçavam e arrastavam as casinhas, que eram de capim. Isso para que o nosso povo fosse mato a fora e eles se apropriassem das terras. O pouquinho que se tinha na verdade, que se resumiu. Até que o pessoal conseguiu se unir na época e dar um basta nesta questão. A partir de 53 a gente começa a viver uma outra história”, relata Moreira.

Até mesmo o nome do lugar eles conseguiram mudar, pois os moradores nunca gostaram do apelido Rincão da Cadeia. No entanto, foi somente em 1981 que foi alterado para Rincão Santo Inácio. Já em 1996, formam a própria comunidade católica e em 2006, começa o processo de se reconhecerem como quilombolas. “Aí que começamos a despertar esse olhar de criar uma associação onde pudéssemos ser realmente reconhecidos, porque até então éramos um povo ali, um grupo de negros no meio do mato, perdido vamos dizer assim, que quando os demais necessitavam vinham buscar a mão de obra e depois a gente era meio que excluído da sociedade”, lembra o presidente.

Vovó Isabel

Maria Isabel Pinto e seu filho Pedro, primeiro professor da comunidade.
Foto: Reprodução/Arquivo da associação.

Depois de se organizarem, chegou o momento de escolher o nome da associação que passou a se chamar Associação Remanescente de Quilombo Vovó Isabel. O nome é uma homenagem à Maria Isabel Pinto e a sua trajetória de vida, pois viúva criou seus filhos com muito sofrimento. Além disso, Flávio Moreira ressalta mais um fato. “Ela nos deu o primeiro professor e para nós, tem uma importância enorme a questão de conhecimento, porque na época, imagina isso foi por volta de 1960, e a gente poder ter alguém da comunidade mesmo reproduzindo o conhecimento que adquiriu com os demais”, ressalta. O primeiro professor da comunidade a que ele se refere é Pedro Pinto.

O presidente explica que a associação foi criada com o objetivo principal de resgatar a cultura que ao longo da história se perdeu muito. Após a criação, formou-se por exemplo na comunidade um grupo de capoeira, em 2010. “A capoeira é o único esporte que foi criado aqui no Brasil e se usa como forma de disciplina, educação, esporte ou até mesmo luta –  que não é nosso objetivo. Queremos mostrar aos nossos pequenos que nem tudo é o lado ruim, porque por um longo período a capoeira foi marginalizada aqui no Brasil”, comenta Moreira.

A comunidade também entrou, em 2014, para o calendário de aniversários do município com a Festa Afrodescendente, em que são realizadas oficinas, capoeira, samba de roda, entre outras atividades, que visam difundir e valorizar a cultura.

Para além da questão cultural, ocorreram também outras melhorias no âmbito socioeconômico, como a ampliação do colégio, conclusão do ginásio de esportes e Unidade de Saúde. No entanto, o maior sonho da comunidade ainda não se concretizou: o território. “Sabemos que é uma luta mais difícil, mas estamos buscando, pois é necessário se quisermos que se mantenha os nossos na História”, frisa o presidente. “Enquanto tivermos forças vamos lutar para que a gente consiga adquirir um território um pouco mais amplo também para se manter”, conclui.

Dona Maria de Fátima Pinto (Mariquinha), neta de Maria Isabel Pinto.

Benzimento: costume que se mantém

Entre as tradições que continuam vivas na comunidade está a da benzedura. O jovem Cassiano dos Santos aprendeu com a avó Maria Floriano a benzer cobreiro, picadas de insetos, enxaquecas, quebranto, entre outros males. “Mas eu busquei aprender, veio do meu querer”, explica. “É uma realização, a sensação é de dever cumprido, que você ajudou alguém. Me sinto feliz, faço de bom coração’, comenta.

Mas ele segue os ensinamentos da avó, respeitando algumas regras que ela repassou. Uma delas é que não se deve benzer contra a vontade. “Não vai funcionar. Se você estiver num dia difícil, estiver estressado no dia da benzedura, é melhor dizer que venha um outro dia”, explica. Outra regra é que o benzedor não deve cobrar. “Afinal, se você está fazendo algo, você aprendeu, não pagou para fazer isso. Foi passado, ensinado”, comenta Cassiano. Ele ainda menciona que aprendeu com a avó que nos finais de semana se deve esquecer que é benzedor e não realizar a prática.

Cassiano é o benzedor da comunidade e segue os ensinamentos da avó Maria Floriano.

Há 10 anos fazendo benzimentos, Cassiano ressalta que 50% do sucesso de uma benzedura depende da devoção da pessoa, da positividade de quem está precisando de ajuda. “Não adianta eu fazer o trabalho de benzedura e a outra pessoa no momento que estou ali benzendo, fazendo todo o trabalho, está duvidando, está pensando ‘isso não vai dar certo, não vai funcionar’. Não pode haver negatividade, entendeu. Tem que ter fé e ser otimista”, finaliza.

Confira o documentário completo no YouTube da Cresol Central Brasil.

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