Destemidas
Mulheres que inspiram, transformam e compartilham
Ser mulher é ocupar lugares no mundo acadêmico e no mercado de trabalho, mas ainda presenciar e viver na pele situações que parecem não acontecer com os homens. É usar a roupa que quiser, mas ter de ouvir questionamentos a respeito do comprimento e decote, às vezes, vindos de outras mulheres. É conversar com mães, avós e amigas para fazê-las repensar padrões e comportamentos enraizados. É sentir medos e desconfortos, que muitas vezes, são tão familiares que passam despercebidos. É ser tachada de louca toda vez que se impõe ou ergue a sua voz.
Para celebrar o Dia Internacional da Mulher, a Cresol convidou associadas das mais variadas idades, profissões, classes sociais, estado civil e etnias, para falarem um pouco sobre seu lugar no mundo.
Angélica: uma mulher com a força muito além do que os olhos veem
Quantas vezes uma mulher é silenciada, interrompida e menosprezada em seu local de trabalho? Quantas vezes uma mulher questiona suas capacidades e se culpa por ser deixada de lado em uma reunião? A Angélica já sentiu na pele essas situações. “No início da minha jornada profissional não entendia que toda a vez que eu era silenciada, interrompida, não era ‘levada à sério’ ou me colocavam para ‘anotar’ em vez de falar durante uma reunião de trabalho, estava sendo menosprezada por ser mulher. Pois, bem que poderia ser por causa da minha falta de experiência. Não entendia porque me explicavam demasiadamente algum assunto que eu já tinha conhecimento. Talvez, eu é que não soubesse explicar direito. Durante muito tempo eu imaginei que o problema era comigo. Mas, ao longo do tempo, me deparei com outras mulheres em situações semelhantes. Aí, percebi que era sistêmico e coletivo. E, se é coletivo, podemos lutar contra isso juntas”, ressalta.
Com o tempo, Angélica Albrecht Gazzoni precisou aprender a se impor e mostrar que domina muito bem sua área de atuação, até porque, não é à toa, que a moradora de Cruzaltense no Rio Grande do Sul é administradora, especialista em desenvolvimento rural, mestra em Ciências Ambientais, extensionista rural e sócia proprietária de uma empresa de topografia e agrimensura. “Se sou interrompida, logo retomo a palavra com um tom de voz mais efetivo. Se explicam algo que eu já tenho conhecimento, cito livros que li, uso termos técnicos ou comento detalhadamente sobre alguma situação semelhante que vivenciei. Se me pedem para anotar durante a reunião, sugiro gravar ou solicitar ao secretário(a) para que faça essa função”, declara.
Angélica ingressou no mercado de trabalho a cerca de 15 anos e lembra que não havia tanta tecnologia e informação na zona rural como nos dias de hoje. “Não tínhamos acesso à internet e telefonia móvel no interior. Não havia financiamento para empreendedores e, se houvesse, como poderíamos empreender sem conhecer o mercado, sem divulgar o produto/serviço, sem marketing? As oportunidades de renda giravam em torno da produção de matéria-prima: leite, grãos, frango e suínos. Para os jovens, migrar do campo para a cidade era, senão uma obrigação, uma oportunidade para ter renda própria”, salienta.
Para cursar o ensino superior, ela precisou migrar para a ‘cidade grande’. O curso de Administração era o único que se enquadrava em seu orçamento. Hoje, a formação é mais do que um título, é um propósito de vida. Logo no início do curso, com o auxílio de uma professora, conseguiu seu primeiro estágio em uma grande empresa do ramo metal-mecânico. Dois anos mais tarde, ela foi contratada e teve a oportunidade de vivenciar de perto a rotina empresarial. No final da faculdade, Angélica participou de um processo seletivo em uma cooperativa de crédito, foi efetivada e pode retornar para a sua cidade natal para trabalhar. Nesse período, ela prestou alguns concursos públicos, dentre eles, o da Emater/RS, instituição na qual atua como extensionista rural até hoje. “Nos primeiros sete anos, me dediquei a trabalhar com as cooperativas agropecuárias. No entanto, a rotina de trabalho e a vivência urbana estavam consumindo a minha essência e a minha capacidade de resiliência”, lembra. Há dois anos, mudou-se para o município de Cruzaltense e passou a trabalhar com aquilo que mais gosta, as comunidades e famílias rurais.
Além de ser uma profissional dedicada e qualificada, Angélica é filha de agricultores familiares, esposa, mãe de uma recém-nascida, como ela mesma diz, em processo de construção. A Eloá chegou em meio a loucura da pandemia e trouxe esperança para vida de Angélica e seu esposo, André. “Além da insegurança de ser mãe pela primeira vez, o medo da Covid-19 atormentava minhas noites. Me preparei para ter um parto normal, mas minha filha nasceu de cesárea. E, tudo bem! Meu esposo sempre muito atencioso cuidou exclusivamente da nossa filha nos seus primeiros 20 dias de vida. Depois? Continuou cuidando”, relata. Ela destaca que o casal compartilha tudo, desde os cuidados com a pequena Eloá até o trabalho doméstico, para que os dois tenham oportunidades iguais de estudar, trabalhar, ler, de lazer e até mesmo, de não fazer nada!
Apesar de estar em um processo de construção maternal, internamente, ela está desconstruindo padrões machistas que ‘naturalizamos’. “Quando uma mãe educa uma menina de maneira diferente da que educaria um menino, fazendo com que a filha ache natural lavar a louça do almoço enquanto o irmão assiste TV na sala, por exemplo, é uma atitude machista. Quando pensamos que uma mulher não tem o direito de não querer ter filhos, estamos sendo machistas. Quando julgamos uma outra mulher pelas roupas que veste, estamos sendo machistas! Vi e vejo atitudes assim seguidamente. E isto serviu para que eu repensasse as minhas próprias atitudes e fugisse da minha ‘zona de conforto’ mental e me levaram a conhecer os propósitos do Movimento Feminista”, relata. A dica dela para essa etapa de desconstrução, é simples empatia. “Aprender a não julgar as pessoas diante de suas escolhas pessoais é o primeiro passo. Parece que fomos educados a julgar os outros o tempo todo! Diante dessa ‘tentação’ pense: e se fosse você? E se fosse sua filha?”, finaliza.
Como muitas mães e profissionais, Angélica já precisou ouvir a clássica e machista frase: ‘Como você concilia a sua carreira profissional com a criação dos seus filhos?’, mas ela tem a resposta na ponta da língua. “Nunca ouvi perguntar para um homem como eles conciliam carreira e filhos? Conciliar filhos e carreira parece ser um desafio apenas da mulher. Mas a gente não faz filhos sozinhas! Percebe que algumas escolhas a sociedade insiste em fazer por nós? Só que todos perdem nessa relação injusta: a mulher sobrecarregada que não se desenvolve na carreira e o homem que perde a experiência de criar os filhos de forma presente”, destaca. Para ela, o feminismo é o caminho para romper esses e outros rótulos, padrões de comportamento e de beleza que foram impostos às mulheres ao longo das gerações. “Sem essa luta a inserção da mulher no mercado de trabalho, sua autonomia reprodutiva e sexual e o seu posicionamento em termos políticos seriam ainda condenados aos olhos conservadores do patriarcado”, alerta.
Neste mês em que se celebra o Dia Internacional da Mulher, o conselho da Angélica é buscar conhecimento para compreender a nossa história e combater a desigualdade de gênero que está impregnada em nós e nosso dia a dia. “Precisamos conhecer a história de luta das mulheres, precisamos entender como chegamos até aqui. Além de revisitar nossa história, precisamos aprender a celebrar as diferenças de gênero que são essencialmente biológicas e acabar com esse antagonismo de rosa X azul. Sim, sejamos todos feministas! Educar nossos filhos e filhas de forma autêntica e livre de rótulos que prescrevem como ‘devemos’ ser em vez de reconhecer como verdadeiramente somos” finaliza.